Viagem ao Araguaia expõe o bom faro jornalístico de José Vieira Couto de Magalhães Por Osmar Mendes Júnior VIAGEM AO ARAGUAIA (1852)José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898)SP: Editora Três, 1974. (Coleção "Obras imortais da nossa literatura" - Vol. 45) |
Uma volta no tempo de 141 anos é necessária para termos uma boa noção de como era o jornalismo do Brasil e como agiam os jornalistas brasileiros em meados do século 19, em plena monarquia, época em que, como se sabe, a imprensa dava seus primeiros e tímidos passos em busca de autonomia. Naqueles velhos tempos, a maioria absoluta dos jornalistas exercia o nobre ofício de registrar os fatos sem que a atividade fosse reconhecida como profissão. Muitos nem sabiam que praticavam o jornalismo.
O livro "Viagem ao Araguaia", publicado pela primeira vez em 1863, é resultado das anotações de uma excursão exploratória através do rio Araguaia feita pelo presidente da Província de Goiás, José Vieira Couto de Magalhães, um jovem sertanista de 26 anos, que também era historiador, geógrafo, antropólogo e estadista. Couto de Magalhães bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1859. No ano seguinte, defendeu tese de doutoramento na mesma faculdade do largo São Francisco. Foi um mestre do jornalismo.
Impulsionado pela necessidade de localizar um novo local para a capital da Província de Goiás, já que a cidade de Goiás dava nítidos sinais de saturação, depois de passada a euforia do ciclo do ouro e da ascensão sempre crescente das fazendas de criação de gado, Couto de Magalhães aproveitou o ensejo para demonstrar que a sua tese de navegabilidade do caudaloso e bonito rio do centro brasileiro, com suas praias arenosas, flora e fauna abundantes, era viável e talvez fosse a grande saída para o necessário progresso de uma região estagnada e carente de todos os recursos.
O Araguaia, fonte inesgotável de deliciosos e saudáveis peixes, seria uma grande via natural para escoamento das riquezas produzidas na região e também de outras províncias vizinhas. Couto de Magalhães acreditava que isso era perfeitamente possível.
A execução do trabalho jornalístico de Couto de Magalhães não foi uma tarefa fácil, como bem se pode imaginar. Além das conhecidas dificuldades de locomoção pelo interior brasileiro daqueles tempos antigos, quando a maioria dos trajetos era feita sobre o lombo de burros e cavalos, que caminhavam por caminhos estreitos, tortuosos, pedregosos e perigosos, juntava-se a total falta de infra-estrutura para os viajantes. Assim, atividades corriqueiras, como uma hospedagem descente para o necessário sono reparador das energias, tornavam-se trabalhos árduos, quase impossíveis. A escassez de conforto necessário ao homem civilizado, mesmo do século 19 era imensa.
Locais apropriados para banhos, espaços adequados para a satisfação das necessidades fisiológicas, entre outros e necessários afins, eram sempre relegados a um segundo e até terceiro planos. Sem contar, naturalmente, com a dificuldade para a preparação de uma alimentação saudável. E ainda havia o aparentemente invencível cansaço causado pelas enormes e sempre dificultosas jornadas diárias. E mais: o incômodo de ter que escrever à mão todos os relatórios, aproveitando a luz do dia ou sob o facho de velas e lampiões.
O livro de Couto de Magalhães ganha importância quando se sabe que o autor venceu todas as adversidades e oferece ao público leitor um retrato fiel de sua aventura, focalizando uma região brasileira que, naqueles tempos, era povoada e habitada por tribos indígenas arredias e rodeada por florestas densas, quase impenetráveis, onde viviam animais ferozes, que talvez nunca tivessem se defrontado com um homem branco.
Couto de Magalhães descreve os trinta e cinco dias de sua excursão com riqueza de detalhes. O leitor de "Viagem ao Araguaia" vai encontrar um texto precioso e fluente, nada sofisticado, onde estão descritos e foram levados em consideração todos os aspectos necessários para uma avaliação correta da região. Ali, sem a afetação dos eruditos, estão dados sobre a rica flora, com suas espécies características e que, até então, ainda estavam quase que intocadas pelo homem civilizado.
Também teve o autor o cuidado de anotar as características da fauna, onde estão igualmente analisados os pássaros e os mamíferos. Os rios da região, inclusive os afluentes do Araguaia, também foram objeto de análise e estudo, como revela este pequeno trecho da obra, que analisa o rio do Peixe:
"A direção geral do rio é de sudeste para noroeste; nasce no Morro Agudo, serra das Tesouras, e deságua no Araguaia, léguas acima de Salinas, com um curso aproximado de 60 léguas.
No lugar do extinto porto, ele levava mui poucas águas, a ponto de poder ser vadeado em muitos lugares com água pelo meio da canela, numa largura de 3 a 4 braças, sua caixa, porém, é enorme, e enormes e belas são suas praias, composta de uma areia alva e fina.
O extinto porto de Santa Rita é um rochedo sobre o qual batem perpendicularmente as águas do rio, para se escoarem depois para o lado do norte; é hoje uma velha tapera, e do grande armazém que aí houve, dos botes que flutuavam sobre as águas verdecentes do rio, existe apenas a memória. A não ser o estar o mato, nesse sítio, mais batido, mais entrançado de urzes e vimes, que sempre crescem nos lugares abandonados pelo homem, nenhum outro vestígio existe dessa antiga habitação.
Este rio é abundante em pescado: distinguem-se, como mais famosas entre as espécies de peixes, o matrinchão, o piau, o pintado, o barbado, o chicote, tubaranas, voadeiras e pacu-açu.
Parece ser aurífero.
Num dos solapões, notei cascalho bem configurado e em tudo semelhante ao do Jequitinhonha, pelo que é provável que seja também diamantino.
No tempo das águas, suas margens alagam-se em grandes distâncias, pelo que as matas, que se cobrem, são estreitas, rarefeitas e de má qualidade.
Os campos adjacentes oferecem o aspecto do que em Minas chamam tabuleiros, isto é, cobertos de árvores de vegetação enfezada entremeadas de capim.
As águas não são aí abundantes no tempo da seca, sendo excessivas no tempo das chuvas.
A caça é muita: compõe-se de antas, veados, pacas, perdizes, patos selvagens e toda sorte de papagaios.
As areias compõem-se de silício, quartzo, fragmentos de carbonatos e sulfuretos de ferro, alguns ocres etc.
As aves aquáticas, o jaburu e diversas espécies de socós povoam constantemente essas paragens.
Empregamo-nos, do meio-dia para a tarde, em pescar e conseguimos, em poucos lanços, peixe em quantidade suficiente para o jantar de toda nossa comitiva e para o sustento do dia seguinte.
Nosso jantar foi na praia e preparado à moda dos índios, o que nos foi fácil, por trazermos em nossa comitiva, dois da nação xavante. A novidade da cena impressionou-me, e aqui a descrevo, para dar ao leitor uma idéia dessas coisas.
Prepara-se o peixe assado ou cozido. O assado obtém-se por meio de um jirau, construído por cima das brasas; os índios dão-lhe o nome de grajaú, e serve, não só para assar o peixe, como qualquer espécie de carne. O cozido obtém-se fazendo um fosso na areia; deita-se o peixe envolvido em folhas, cobre-se de novo com a mesma areia e ateia-se o fogo por cima, de modo que se opera cocção pode meio do vapor resultante da umidade do peixe, que fica perfeitamente perfumado, com os adubos que o transpassam. Com essa simples cozinha, por mesa e toalha o leito frio da areia, tivemos um magnífico jantar, tanto mais agradável, quanto o sol, que pendia já para o ocidente, dava ao céu achatado um colorido de verde-claro morrendo em roxo, que filtrava pelo espírito uma sensação agradável e melancólica, de indefinível saudade".
As nações indígenas existentes na região também não escaparam do crivo criterioso de Couto de Magalhães. Vejamos mais um trecho da obra, onde o autor descreve a tribo dos canoeiro:
"O canoeiro é ordinariamente de estatura baixa, cabelos e olhos negros, cor de bronze; fino, ágil e com as pernas levemente arqueadas. Tem esse nome, por se terem tornados célebres os seus ataques contra os navegantes do Maranhão, a quem acometiam em levíssimas ubás e com agilidade tal, que chegavam sem ser pressentidos, retirando-se sem sofrer dano.
A tribo dos canoeiro parece ter tido outrora alguma civilização, porque a maior parte dela entende alguma coisa da língua portuguesa, o que não se pode explicar por aprendizagem que tenha feito agora, visto que seus membros não dão absolutamente fala. Algum ódio profundo contra a raça branca parece dominar esses selvagens: perseguem-na incessantemente e não dão nunca tréguas.
No rio Claro, foram mortos há poucos anos alguns que nos atacaram, e notou-se-lhes uma espécie de casca, que ia desde o cotovelo até mão, tão grossa como um calo, resultante da prática que eles tem de acompanhar os brancos, arrastando-se pelos capins, como se fossem serpentes. O canoeiro é mais valente do que outro qualquer índio, ao que acresce ser mais sagaz e previdente. Quando o canoeiro bate, a destruição é certa, porque ele não o faz sem escolher ocasião oportuna, custe isso muito embora uma espionagem incessante de muitos meses. Ordinariamente matam e roubam tudo quanto é ferro, couro, roupa. O dinheiro e outros quaisquer objetos preciosos a nossos olhos não têm para eles valor algum.
Em toda parte do Norte desta Província, vê-se assinalada por uma destruição a passagem desta tribo assoladora. A poucas léguas do lugar em que estou, jazem as ruínas do extinto arraial de Tesouras, cujos habitantes eles mataram e cujas casas assolaram sem a menor piedade, entregando a povoação a um incêndio que tudo devorou, à exceção das paredes e muros de pedra, que ainda existem. Além desse, existem as freguesias de São Feliz, Cocal, Água Quente e Amaro Leite, cujos sertões foram os mais ricos em população e gado, todos reduzidos a cinzas por eles, além de Crixás e a vila de Pilar, que foram dizimadas.
Usam de armas mais perfeitas do que as outras tribos; servem-se de punhais, espadas, baionetas, flechas com ponta de ferro, fazendo deste sempre ampla provisão nas povoações que assolam.
Em nossa comitiva vem o alferes José Rodrigues de Morais que, em 1859, foi encarregado pelo sr. Gama Cerqueira, de bater esses selvagens, que atacaram Santa Rita.
Falando das armas, não poderei deixar em esquecimento uma, que é das mais terríveis, isto é, o porrete: tiram-no do cerne de madeiras de lei, atam-no com uma corda e manejam-no de modo que sua pancada, se não é sempre mortal, serve pelo menos para derribar a vítima e dar-lhe ocasião de matá-la mais comodamente.
Existe aqui, em Crixás, o alferes Antonio Xavier, que foi derribado de cima do cavalo por um desses tiros, lançados de 60 passos de distância.
O porrete é curto, de 3 palmos, e o cabo é do tamanho de 4 polegadas; a ponta é mais larga do que o resto e termina em forma de azagaia.
Todas as outras tribos de índios têm medo do canoeiro e respeitam-no, não só pelo seu grande número como poder ser a mais aguerrida, feroz e inteligente.
Os canoeiro, como as outras tribos, são submetidos a chefes, a quem dão o nome português de Capitão, o que por sua vez tem sob suas ordens tenentes, alferes, sargentos e cabos.
Mais guerreiros do que os outros são também muito disciplinados.
Obedecem cegamente a seus chefes e atacam em boa ordem.
Todas as tentativas de catequese hão sido infrutuosas. Nem mesmo se tem conseguido até o presente civilizar os presos em combate. Aí vai um traço característico de seu amor pela independência, da obediência a seus chefes, do ódio que nos votam e do qual são testemunhas diversas pessoas de conceito..."
"Viagem ao Araguaia" permite leitura agradável e muito interessante, apesar de ter sido elaborado há quase um século e meio. Naturalmente houve uma atualização na grafia de certas palavras. O autor deixou registrado um documento que, com o passar do tempo, transformou-se numa fonte histórica bastante confiável e que, certamente, tem sido procurada por historiadores preocupados em resgatar uma parte importante da História do Brasil, depois da chegada dos portugueses. Jornalisticamente falando é uma obra completa.
Em sua primeira parte, o autor descreve como os viajantes daqueles tempos, venciam a distância entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Os que vinham da Corte por mar, desciam em Santos e venciam a serra cavalgando antes de chegar à capital paulista. Os que preferiam vir por terra, levavam dias e dias sobre os cavalos e burros, hospedando-se em fazendas e sítios até alcançar seus objetivos. Muitos preferiam este roteiro longo e difícil, especialmente aqueles que tinham medo de embarcar. Outros o faziam por economia já que, por terra, não se gastava quase nada na aventura.
Couto de Magalhães foi colaborador de vários jornais de sua época, proferiu inúmeras conferencias e escreveu uma obra bastante extensa. "Os Guaianases" ou "Fundação de São Paulo" (1860), "Dezoito Mil Milhas no Interior do Brasil (1872), "Família e Religião entre os Selvagens" (1873) e "Anchieta" (1897) estão entre seus títulos de maior destaque. Dono de sólida cultura, falava vários idiomas, entre os quais o francês, o inglês, o alemão, o italiano, o tupi e inúmeros dialetos indígenas. Viajou várias vezes pelo interior do Brasil e chegou a visitar a Europa. Esteve na Guerra do Paraguai e era monarquista convicto. Morreu jovem, aos 61 anos, em 1898.
Aos interessados em conhecer seu belo trabalho, além das bibliotecas mais equipadas, é possível obter exemplares nos diversos sebos espalhados pelo centro da cidade de São Paulo. Couto de Magalhães há muito tempo não é reeditado.
Esta resenha teve por base uma edição de 1974 de "Viagem ao Araguaia", o volume 45 pertencente à coleção "Obras imortais da nossa literatura", da Editora Três, de São Paulo, SP.
Índia mestiça da Aldeia Meruri, Maria do Carmo Toledo, mostra miniaturas de Índios Kalapalo e Xavante. Ela morou na Ilha do Bananal, mora em Aragarças às margens do Berohokã - o grande Rio Araguaia - e com seu trabalho viajou pelo Brasil mostrando o que o índio produz e usa e, assim, mantém viva a cultura indígena | Cuias de Coité para tomar água e instrumentos musicais como o maracá utilizado nas danças indígenas | |
Foto histórica mostra índio Karajá da Ilha do Bananal na década de 50 | Aruanã dos índios Karajá | |
Foto histórica mostra Xavantes há 50 anos preparado alimentos. "Como a alimentação muda o ser humano. Os índios Xavante tinham estatura de 2 metros de altura e, hoje, estão na faixa de 1,70 metro por causa da alimentação. Antes comiam muitas frutas, peixe, caça e hoje estão comendo muito pão, tomando refrigerante e continuam comendo carne", observa Maria do Carmo em foto exposta em sua loja Bêro Can em Aragarças | Tela com criança Caiapó | |
Tela com criança Caiapó | Outra foto histórica mostra índio Xavante na década de 50 conduzindo cesto na cabeça | |
Maria do Carmo: "O artesanato indígena feito dentro de uma aldeia tem uma alma. Quando é feito fora da aldeia fica mestiço como eu" | ||
Reprodução de tela mostrando índio Caiapó | Brincos com penas de aves | |
Cesto para carregar alimentos ou objetos | Colares confeccionados utilizando sementes | |
Índio Caiapó em tela de um artista plástico do sul da Bahia | Maria do Carmo: "Na nossa passagem por este planeta, curumim, temos de deixar nossas pegadas" | |
Tartaruga confeccionada a partir de cabaças: artesanato local de Aragarças | Máscaras do kuarup do Xingu e cestarias Karajá | |
Artesanato mostra o Aruanã dos índios Karajá | Resina aromatizante | |
Rio Araguaia em Aragarças, Goiás. O quintal de Maria do Carmo sai na Praia Quarto Crescente. Do outro lado do rio é Barra do Garças, no Mato Grosso | Entrevista concedida em cima do banco xinguano com as cerâmicas dos índios Wuará ao fundo | |
Tela pintada por Maria do Carmo: índio xinguano | Máscaras indígenas utilizadas no Kuarup no Xingu | |
"Saí da aldeia com 14 anos, casei com 17 anos e fui embora. Quando retornei achei que meu povo estava perdendo a cultura. Estavam se envolvendo com álcool, as meninas muito cedo já eram mães - meninas com 18 anos já tinha três ou quatro filhos. Eu quis ajudar eles de alguma maneira" | O turista em Aragarças encontra artesanato indígena | |
Artesanato local: pescador com vara de anzol em Aragarças ou Barra do Garças | Maria do Carmo em sua loja | |
Maria do Carmo em banco esculpido por índios do Xingu. Detalhe: um animal com duas cabeças. | Maria do Carmo e Yuara Crescencio em Aragarças | |
"Como eu não era funcionária da Funai, montei uma loja para mostrar a cultura deles criando uma ponte em Barra do Garças, Aragarças, entre o índio do Acre, Rondônia, São Félix do Araguaia, Xingu e de Brasília. Mas para manter essa ponte funcionando pensei no custo que ia ter e na terra de índio não se vende coisa de índio. Então fui obrigada a sair para fora, fazer exposições por todo o Brasil levando o índio para mostrar que realmente era do índio" | Colar confeccionado por índios com "pedras" retiradas da cabeça do peixe curvina. Cada peixe tem duas "pedrinhas" dessas na cabeça | |
Banco xinguano, peça única na loja | Coités, cestos e maracás | |
Artesanato: ET. Em Barra do Garças em cima da Serra Azul há um discoporto e há quem diz que já viu Ovinis no local | Um dos colares dos índios xavantes é feito com sementes do capim navalha | |
Maria do Carmo no seu quintal na beira do Rio Araguaia | Outro ângulo da loja | |
Banco esculpido por índios do Xingu | Cuias e o maracá de coite utilizado durante as danças indígenas | |
Cerâmica dos índios Waurá do Xingu: peças utilitárias. Cerâmica para uso no dia-a-dia | Cerâmica dos índios Karajá que mostra mais a pintura corporal | |
Puçá é um tipo de rede indígena utilizada pelos índios para pescar | ||
Veja também vídeo que mostra o trabalho da índia mestiça do Berohokã | A Cultura Indígena Extrapola Fronteiras | |
Índios do Brasil | ||
Artigo: Jornalista Wagner Oliveira |